No Brasil semiárido, a escassez de água potável leva seus habitantes à busca por esse pressuposto fundamental da vida nas profundezas subterrâneas de seus solos áridos. No entanto, os poços escavados não raramente lhes oferecem uma água salobra, muito mal recebida pelo organismo humano, que reage, dentre outros sintomas patológicos, com dores estomacais, fezes diarreicas e cálculos renais com suas dores agudas que se somam às dores crônicas do sofrido povo sertanejo.
No entanto, a inteligência brasileira, inspirada na inteligência de povos que superaram o desafio, não apenas tecnológico, mas existencial, de dessalinizar a água do mar para prosseguirem em seu território como nação, desenvolveu um projeto compacto e pluridimensional de dessalinização de águas salobras, socioambientalmente sustentável e sustentado: o Programa Água Doce.
Nos dias 13 e 14 de novembro de 2024, ocorreu, em Sergipe, o IX Encontro Nacional de Capacitação e Integração do Programa Água Doce, ao qual acorreram representantes do governo federal e dos governos dos noves estados nordestinos e de Minas Gerais, totalizando os dez estados que compartilham o território do semiárido brasileiro. No primeiro dia, houve discussões, em Aracaju/SE, sobre o andamento dos projetos nos respectivos estados; no segundo dia, deu-se uma visita técnica a uma unidade dessalinizadora situada na comunidade Cacimba Nova, em Poço Verde/SE.
Em Cacimba Nova e muitos outros lugares do semiárido brasileiro, onde há um poço profundo a ofertar água salobra, modulou-se um terreno, construiu-se um abrigo, e nele se instalou uma máquina dessalinizadora, com filtros para fragmentos sólidos e membranas semipermeáveis realizadoras da dessalinização da água bruta captada do subsolo. A água tratada fica armazenada em um vasto tonel conectado a um chafariz, de onde os moradores locais coletam as águas tornadas doces.
Por sua vez, o rejeito aquoso contendo o concentrado salínico é depositado num tanque assentado em solo escavado e protegido por manta, onde evapora com segurança ambiental, sendo aproveitado, em alguns locais, para a criação de tilápias ou camarões, ou para a irrigação de plantações de palma.
No entanto, o fator diferencial do êxito desse programa é a concessão da gestão da unidade dessalinizadora a um comitê gestor representativo da própria comunidade beneficiada, o qual passa a tratar com as instâncias executivas dos entes políticos que integram o projeto, objetivando o prosseguimento virtuoso de sua operatividade.
Assim sendo, se, em dado momento, um dos entes federativos suprime sua participação cooperativa para o funcionamento do projeto, a comunidade poderá buscar suporte para a continuidade da atividade: nos entes políticos que remanescerem interessados; na iniciativa privada; e até mesmo em seus próprios recursos, amealhados com as contribuições dos usuários, e com o quanto arrecadado com a comercialização das culturas animais ou vegetais
porventura mantidas com a água salinicamente concentrada, no módulo territorial da unidade.
E esse aspecto da gestão comunitária comunica a necessidade de os entes federativos se abrirem cada vez mais para práticas de fomento e apoio a projetos comunitários autossustentados, em que os cidadãos beneficiados assumam a gestão de seus interesses, inclusive com certa emancipação e suficiência econômicas em relação ao poder público, criando uma cultura de autogestão fortalecedora da continuidade de projetos que, sob a dependência absoluta de entes estatais, poderiam ter sua longevidade comprometida.
Em tempos de tão estéril problematização e polarização ideológica, projetos simples, eficientes e seguros como o Programa Água Doce, materializadores do desiderato constitucional de redução das desigualdades sociais e regionais, apontam para o melhor caminho político da atualidade: o pragmatismo cooperativo, responsável e solucionador.
Adelmo Pelágio